sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O CONCEITO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA NA PERSPECTIVA CRISTÃ À LUZ DE ARISTÓTELES


O CONCEITO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA NA PERSPECTIVA CRISTÃ À LUZ DE ARISTÓTELES
Eduardo Willian da Silva[1]
P. Dilson Passos Júnior[2]

RESUMO

O presente estudo analisa e apresenta a importância e a influência da encíclica Rerum Novarum a respeito da Justiça Distributiva. Procurou-se demonstrar as contribuições para melhorias sociais que viabilizaram a dignidade do operário. Utilizou-se como metodologia a revisão bibliográfica, por meio da leitura de textos, artigos e livros concernentes ao tema. Primeiramente, aborda-se um breve conceito aristotélico de Justiça Distributiva, para situar o leitor e, posteriormente, discute-se sobre o documento papal mencionado. O objetivo principal é mostrar a importância dessa carta encíclica, embasada em Aristóteles, que apontou a necessidade da intervenção do Estado em prol de uma justa distribuição dos bens universais. Analisando a Justiça Distributiva à luz da Rerum Novarum, verificou-se a importância que esta teve, influenciando a luta pelos direitos dos menos favorecidos.
Palavras-chaves: Aristóteles. Justiça Distributiva. Bens Universais.


INTRODUÇÃO

O conceito de Justiça Distributiva de Aristóteles pode ser estudado a partir de uma perspectiva cristã, reflexão esta que vem adquirindo forças ao longo dos anos, visto que este ganhou importância no século XX com o surgimento das encíclicas sociais da Igreja Católica. Considera-se, aliás, a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, como o primeiro documento a retomar a questão da Justiça Distributiva, objeto deste artigo.
            A Justiça Distributiva para Aristóteles é considerada a maior das virtudes. Ela é perfeita, porque as pessoas que possuem o sentimento de Justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo. Tal modelo teórico aristotélico, ou seja, o princípio de igualdade proporcional é incitado no documento papal, que valoriza a importância do Estado no exercício deste conceito.
Com isso, o que se quer é analisar a importância da Justiça Distributiva para a dignidade e o bem do homem, buscando discutir a situação daqueles que são prejudicados por uma distribuição injusta dos bens universais, como início de grandes iniciativas na luta para entender e combater a desigualdade.
            Houve a preocupação em apresentar brevemente, o pensamento de Aristóteles em relação à Justiça, como uma Virtude, e, em seguida, abordar a questão da Justiça Distributiva e sua forma de aplicação. Além disso, discute-se o surgimento deste conceito na perspectiva cristã, voltando-se, prioritariamente, à reflexão aos mais necessitados e para a classe dos operários. Por fim, destaca-se as contribuições adquiridas graças a esta encíclica.



1 JUSTIÇA DISTRIBUTIVA EM ARISTÓTELES

O conceito aristotélico de Justiça, a priori, denomina-se como a maior de todas as Virtudes, pois visa tanto o bem pessoal (individual), quanto o bem comunitário (Pólis), tanto que, chama-se de justo aquele que tende a produzir e preservar a felicidade comum. Ademais, é também compreendida a partir de um “justo meio”, ou seja, consiste na justa medida com que se deve agir e distribuir os benefícios, as vantagens, os ganhos, os males, e/ou as desvantagens, permanecendo em uma posição intermediária: nem excesso, nem falta.
  Para Aristóteles, a Justiça é uma “disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e a desejar o que é justo” (ARISTÓTELES, 2001, p.94). Isto quer dizer que tal Justiça do homem provém da virtuosidade na qual ele vive, já que justo é aquele que cumpre e respeita a lei: “O homem sem lei é injusto e o cumpridor da lei é justo, evidentemente todos os atos conforme à lei são atos justos” (ARISTÓTELES, 2001, p.95).
  O conceito de Justiça desenvolve-se no convívio humano, nas relações em que é observada e concebida, sendo considerada como uma virtude social, preocupando-se com a igualdade e o equilíbrio no convívio na Pólis. Sobre esse aspecto, Miguel Reale assim examina:

Tratando da justiça como uma das virtudes, Aristóteles soube genialmente determinar o que distingue e especifica a sua proporcionalidade a outrem, ou em outras palavras, modernas, a nota de sociabilidade. A justiça é uma virtude que implica sempre algo objetivo, significando uma proporção entre um homem a outro homem; razão pela qual toda virtude, enquanto se proporcionem a outrem, é, a esse título, também justiça. (REALE, 1999, p.549)

Esta proporção entre “um homem a outro homem”, citado acima, parte do conceito do justo meio, que é o ponto intermediário entre o iníquo e o equitativo. Assim, segundo Aristóteles, o justo deve ser ao mesmo tempo intermediário, igual e relativo (dependendo do mérito de cada pessoa, a distribuição dos bens será realizada). Temos, então, o justo particular distributivo, portando três características: a subordinação (entre soberano e o súdito), a proporcionalidade e a análise dos méritos de cada indivíduo.
A Justiça Distributiva ocorre quando o soberano tem que distribuir ônus (encargos, responsabilidades e deveres para manter o bem comum) e bônus (benefícios e honras) aos súditos, segundo a democracia ateniense. Além de ter a noção de não beneficiar quem já tem demais e não onerar os que têm responsabilidades demais.
Aristóteles imprime na Justiça Distributiva a marca da igualdade, que busca ajustar a discrepância, dando a cada um conforme lhe é devido, bem como os desiguais para torná-los iguais. Logo, de acordo com Leonardo Sampaio:

Justiça distributiva designa um constructo relacionado à maneira como as pessoas avaliam as distribuições de bens positivos (renda, liberdade, cargos políticos) ou negativos (punições, sanções, penalidades) na sociedade. Ao fazer julgamentos distributivos, os indivíduos avaliam, a partir de parâmetros que determinam qual método distributivo é mais ou menos justo aplicar no contexto da distribuição, em que medida a distribuição favoreceu ou prejudicou os envolvidos. (SAMPAIO, 2009, p.2)

Compreende-se, portanto, que a Justiça Distributiva lutará para que cada indivíduo receba o que lhe é devido, segundo seus méritos, visando um bem comum para que não haja disputas ou queixas. Entretanto, a igualdade será também exercida diante das injustiças, fazendo com que os vícios cometidos sejam distribuídos, segundo a sua proporção, como num furto, pois necessitará que seja dado sua sentença mediante à dimensão da causa cometida.


2 UMA PERSPECTIVA CRISTÃ SOBRE A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA

Escrita pelo Papa Leão XIII e publicada em 15 de maio de 1891, a encíclica Rerum Novarum trata das condições das classes trabalhadoras, discutindo a relação entre o governo, os negócios, o trabalho e a igreja. A encíclica em questão dá início à Doutrina Social da Igreja influenciando a criação de um novo ideário social e político, ou seja, a "Democracia Cristã”, que defende a implantação de uma democracia baseada nos princípios cristãos.
A principal intenção para a elaboração do documento foi a necessidade em estabelecer critérios das relações entre patrões e empregados à luz dos valores cristãos em busca da Justiça Social. Ao mesmo tempo, criticar a forma com que estes os exigiam, submetendo-os a longas horas de trabalho, sem remunerá-los apropriadamente por isto. Eis a defesa ao respeito à dignidade do ser humano e ao afastamento à exploração deste para a obtenção de lucro, a saber:

Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objecto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços. (PAPA LEÃO XIII, 1891, p.7)

            Além desta exigência sobre os direitos trabalhistas, tanto da parte do operário quanto do patrão, a encíclica salientou os deveres pelos quais o Estado deve comprometer-se junto aos cidadãos, distribuindo os bens de maneira justa, tendo em vista os de classe menos favorecidas. Em meados do século XIX, eram explorados devido ao grande crescimento das indústrias, das cidades e das populações urbanas, além das inúmeras ferrovias. Assim, os trabalhadores submetidos a esta nova ordem, sofreram muito em busca de melhorias de vida que nunca chegavam, devido ao salário extremamente baixo. Sobre a relação dos governantes e as consequências da desigualdade do povo, o Papa Leão XIII defende:

E por isso que, entre os graves e numerosos deveres dos governantes que querem prover, como convém, ao público, o principal dever, que domina todos os outros, consiste em cuidar igualmente de todas as classes de cidadãos, observando rigorosamente as leis da justiça, chamada distributiva. (PAPA LEÃO XIII, 1891, p.12)

Primeiramente tratada por Aristóteles, a Justiça Distributiva é apresentada de maneira que “à justiça e à injustiça devemos indagar com que espécie de ações se relacionam elas, que espécie de meio-termo é a justiça, e entre que extremos o ato justo é o meio-termo” (ARISTÓTELES, 2001, p.94). Com o surgimento da Rerum Novarum, ganha uma nova perspectiva, impulsionado pelas reflexões que Aristóteles, apresenta e é sensível aos acontecimentos principais de sua época. Buscou reforçar o pensamento aristotélico em relação à justa distribuição do bônus, em contrapartida ao ônus, visando o bem comum, que para ele estava sendo colocado em segundo plano perante aos que tinham maiores condições e/ou tinham o encargo superior, porque almejavam somente os próprios interesses e deixavam de agir justamente com os que lhe prestavam serviços.
Assim, esta encíclica confronta tais ações, indo ao encontro do pensamento aristotélico sobre Justiça, agora, porém, em um viés cristão, considerando-a como a primeira a tratar sobre estas questões, dando um passo inicial para influenciar o que virá quanto à luta pelos direitos dos menos favorecidos.


3 CONTRIBUIÇÃO DA RERUM NOVARUM DIANTE DA ABORDAGEM DO TEMA JUSTIÇA DISTRIBUTIVA

A encíclica Rerum Novarum, despertou inquietações - primeiramente, nos membros da Igreja, e posteriormente, aos demais públicos - a respeito da estrutura de Justiça desenvolvida em determinados países, assumindo o papel de defender e promover a dignidade humana, lutando pelos direitos dos mais necessitados, sem pretensão de pender para alguma forma de partido político. Exceto, vale ressaltar, ao seu próprio baseado nos princípios cristãos, firmada na caridade e na justiça.
A partir destas motivações e percepções da posição que a Igreja precisava assumir, houve um grande aumento de bispos, padres e leigos. Todos, aliás, em geral, passaram a trabalhar e dedicar-se, em diversos países, mais à pastoral social, gerando o grande crescimento de entidades filantrópicas assistencialistas e movimentos leigos. Tais entidades e movimentos, com ajuda do Estado, conseguiram desenvolver o objetivo pelo qual foi criado, ou seja: a assistência aos menos favorecidos. O Documento de Aparecida também reforça esse aspecto:

A Igreja é advogada da justiça e dos pobres, precisamente ao não identificar-se com os políticos nem com os interesses de partido. Só sendo independente pode ensinar os grandes critérios e os valores irrevogáveis, orientar as consciências oferecer uma opção de vida que vai além do âmbito político. (V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO e DO CARIBE, 2007, p.278)

            Este novo olhar para a realidade, fomentada pela Encíclica, buscou salientar e acompanhar os deveres que o Estado exerce em função do homem, afirmando que o Estado é posterior a ele e que tem o dever de garantir e preservar a segurança de todos em relação à propriedade, fazendo com que os bens universais cheguem também às classes proletárias, por meio de um salário digno.  Todos os homens são iguais, além de que “o destino universal dos bens exige a solidariedade com as gerações presentes e as futuras. Visto que os recursos são cada vez mais limitados, seu uso deve estar regulado segundo um princípio de justiça distributiva, respeitando o desenvolvimento sustentável” (DOCUMENTO DE APARECIDA. 2007, p.69).
            Assim, este conceito de Justiça Distributiva primeiramente interpretada por Aristóteles e que ganhou uma nova perspectiva com o surgimento da Encíclica, reforça a importância dos direitos dos trabalhadores e dos patrões, dando a cada um conforme lhe é devido, ajustando a discrepância que a desigualdade imprime. Sendo que, a justiça considerada a maior de todas as virtudes, deverá ser exercida como método de contribuição no auxílio dos operários.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após as reflexões apresentadas sobre o conceito de Justiça Distributiva para Aristóteles e posteriormente para o pensamento desenvolvido na Encíclica Rerum Novarum, destaca-se a sua importância e colaboração para uma melhor distribuição dos bens universais, que em determinadas épocas e países não eram feitas de forma que valorizasse o trabalho dos operários, exigindo muito e recompensando pouco.  Salientou-se o papel do Estado diante dessas situações de desigualdade, sendo, pois, a principal maneira de ajustar tal discrepância, valorizando a dignidade e o trabalho.



REFERÊNCIAS

V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO e DO CARIBE.  Documento de Aparecida. 2007. Disponível em << http://www.dhnet.org.br/direitos/cjp/a_pdf/cnbb_2007_documento_de_aparecida.pdf >>. Acessado em 13/04/2017.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, tradução: Torrieri Guimarães. São Paulo/ SP. Editora Martin Claret Ltda.

CARMO, Maria Izabel Mazini do. As condições da classe operária à época da Revolução Industrial. Disponível em<< http://www.historia.uff.br/nec/condicoes-da-classe-operaria-epoca-da-revolucao-industrial >> Acessado em 27/04/2017.

PAPA LEÃO XIII. Rerum Novarum, 1891. Disponível em << https://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html >> Acessado em 11/04/2017.


REALE, Miguel. Filosofia do direito. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

SAMPAIO, Leonardo. Justiça distributiva: uma revisão da literatura psicossocial e desenvolvimentista. Disponível em << http://www.scielo.br/pdf/pe/v14n4/v14n4a03>>. Acessado em 15/04/2017.




[1] Aluno do primeiro ano do Bacharelado em Filosofia do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL. E-mail: eduardo.bsp@salesianos.com.br.
[2] Professor Doutor do curso de Filosofia do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL.

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