sexta-feira, 8 de junho de 2018

ANÁLISE DO PERFIL DE SÓCRATES EM TRÊS OBRAS: A DEFESA DE SÓCRATES – PLATÃO. A APOLOGIA DE SÓCRATES – XENOFONTES AS NUVENS – ARISTÓFANES


ANÁLISE DO PERFIL DE SÓCRATES EM TRÊS OBRAS:
A DEFESA DE SÓCRATES – PLATÃO.
A APOLOGIA DE SÓCRATES – XENOFONTES
AS NUVENS – ARISTÓFANES
INTRODUÇÃO

Poucas vezes na história apareceram homens com tamanha determinação, virtude e caráter como Sócrates. De fato, até hoje, é dele um dos grandes discursos registrados, que infelizmente, foi o de sua defesa no tribunal contra as acusações que lhe faziam. Quais pessoas que passaram pela vida, e, nela foram totalmente autênticos com seus ideais, e que também foram desapegados a tudo que os demais desejavam, sem serem perseguidas? Com Sócrates não foi diferente. Analisar-se-á neste breve trabalho um pouco sobre esse misterioso perfil em base das três obras assim citadas por Pessanha:
 “Sócrates não deixou nenhum escrito. Tudo o que sabemos sobre ele — sobre sua vida e sobre seu pensamento — provém de depoimentos de discípulos ou de adversários. Os historiadores da filosofia são unânimes em considerar que os principais testemunhos sobre Sócrates são fornecidos por Platão e Xenofonte, que o exaltam, e por Aristófanes, que o combate e satiriza. Do confronto desses diferentes retratos é que se pode tentar extrair a verdadeira fisionomia de Sócrates.”(Pessanha, 1987 pg32).

1. O HOMEM SÓCRATES DA DEFESA

Neste texto, Platão é quem narra a defesa de Sócrates, e como discípulo, tem um discurso apaixonado pelo mestre. Como explica Santiago

“A primeira questão evidente na obra é se as palavras que Platão "coloca" na boca de Sócrates seriam as mesmas proferidas em concreto perante o Tribunal de Atenas ou na verdade refletem o pensamento de Platão em relação às injustiças sofridas por Sócrates.” (SANTIAGO, 2017)
                          
            Porém, ainda sim, Borges afirma que mesmo com a admiração de Platão, o discurso de Sócrates não deixa de ter autenticidade, mostrando sim sua personalidade (BORGES, 2017)
            Sócrates diz não ser igual àqueles que o acusam, que falam com exuberância, porém nunca dizem a verdade. Ele, porém, é espontâneo, e não sabe ser nada além dele mesmo. (Platão, 1987 pg33)
            Seu orgulho sobre os demais homens é simples, se considera mais sábio de Atenas porque reconhece que nada sabe, dizia ele “só sei que nada sei!”. Diferente dos outros homens que nada sabem, porém, pensam que sabem. (Platão, 1987 pg38)
            Homem de convicção, mesmo com o risco da condenação não muda de opinião, ainda cita Aquiles, que mesmo alertado que morreria se enfrentasse Heitor, não teme em reconstituir a honra. (Platão, 1987 pg45)
            A morte para Sócrates aqui, é um mistério que pode levá-lo talvez ao maior bem do homem. Ele não a teme. Acredita que mesmo que seja o fim, seria como uma boa noite de sono, e caso seja um encontro com os mortos, seria uma honra conhecer todos os heróis gregos.
            Tem convicção que mesmo se for absolvido, continuará a filosofar, e nunca deixará de fazê-lo. Diz também que nunca cobrou para ensinar, e não consegue fazê-lo como faz Górgias, diz ele: “(...) estou igualmente à disposição do rico e do pobre, para que me interroguem ou, se preferirem ser interrogados, para que ouçam o que digo.” (Platão, 1987 pg50).
            Sócrates é autêntico. E continua sendo até quando tem capacidade de argumentar para livrar-se da morte, não o faz para não trair a si mesmo. Como ele diz para aqueles que o condenaram:
“(...)talvez imagineis, senhores, que me perdi por falta de discursos com que vos poderia convencer, se na minha opinião se devesse tudo fazer e dizer para escapar à justiça. Engano! Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaro, por me recusar a proferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e dizendo uma multidão de coisas que declaro indignas de mim, tais como costumais ouvir dos outros”  (Platão, 1987 pg55)

            A defesa termina com a frase de Sócrates: “Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor rumo, se eu, se vós, é segredo para todos, menos para a divindade.” (Platão, 1987 pg58).


2. A APOLOGIA DE SÓCRATES – XENOFONTES

O escrito de Xenofontes não carrega a tamanha admiração de Platão por seu mestre. No livro Os pensadores se encontrará:

“Xenofonte traça o perfil do mestre e transcreve o que colhera de seus ensinamentos. Se o Sócrates visto por Xenofonte não possui a mesma profundidade filosófica daquele que é mostrado por Platão, sua grandeza humana é igual e igualmente enaltecida” (Pessanha, 1987 pg27).

A filosofia de Sócrates a respeito da morte para Xenofontes é diferente. Apesar de Sócrates estar muito seguro a respeito de sua condenação, seu entendimento parece mudar. Na apologia, o condenado fica agradecido por ter chego sua hora, acredita até, ser a vontade de deus. Como afirma Xenofontes:

“Sócrates diz ter articulado sua defesa por duas vezes. Para persuadir os juízes, mas não conseguiu, seu demônio interno não permitiu. Também pensa ser a vontade de deus sua morte, e acha bom. Pois não quer viver doente ou morrer de velhice: preferirei morrer a mendigar servilmente a vida e fazer-me outorgar uma existência mil vezes pior que a morte” (Xenofontes, 1987 pg179).

Não são necessários muitos comentários sobre o homem Sócrates para Xenofontes, já que sua opinião é próxima de Platão, basta aqui, encerrar com seu comentário final:

“Recuara diante dos outros bens, assim não fraquejou à barba da morte e serenamente a recebeu e sofreu. Quando reflito na sabedoria e grandeza de alma deste homem, não posso deixar de acordar-lhe a memória e a esta lembrança juntar meus elogios. E se dentre os enamorados da virtude alguém houver que haja privado com homem mais prestante que Sócrates, reputo-o o mais venturoso dos mortais.” (Xenofontes, 1987 Pg.184)

AS NUVENS – ARISTÓFANES

            A visão de Aristófanes é diferente das anteriores. Serve de um contraponto para a personalidade de Sócrates. Dirá Pessanha:
“E, possivelmente, um dos motivos da divergência entre os depoimentos que oferecem e o de Aristófanes reside neste fato: eles falavam do Sócrates maduro, o mestre que se considerava imbuído da missão — assumida em face de decisiva declaração do oráculo de Delfos — de despertar os homens para o conhecimento de si mesmos. Já Aristófanes, particularmente n’As Nuvens, teria feito uma caricatura do Sócrates mais jovem, personagem já famosa em Atenas antes mesmo de desempenhar a atividade missionária de que se julgou incumbido mais tarde.” (Pessanha, 1987 Pg17)

Sócrates para Aristófanes é um enganador, charlatão, louco, considerado como sofista. Em um trecho por exemplo, Estrepsíades protagonista da história aponta para casa de Sócrates e diz:

“ESTREPSÍADES (Declamando.) De almas sábias é aquilo um "pensatório". . . Lá moram homens que, (...) Se a gente lhes der algum dinheiro, eles ensinam a vencer com discursos nas causas justas e injustas.
FIDÍPIDES Ah! Já sei, uns coitados! Você está falando desses charlatães, pálidos e descalços, entre os quais o funesto Sócrates e Querefonte...” (Aristófanes, 1987 Pg190)

            Ao longo da peça acontecem diversas situações em que mostram não apenas Sócrates, mais também todos os seus discípulos divagando sobre diversos assuntos. Comprovando eles, coisas com as maiores bobagens possíveis, como medir o salto de uma pulga com as “botinhas de cera” colocadas nela. Aristófanes também deixa muito explícito que considera Sócrates um ateu. Pode-se ver isso neste trecho:

“SÓCRATES Pois de fato só elas é que são deusas (as nuvens), todo o resto são lorotas!
ESTREPSÍADES (Assustado.) Epa! E Zeus, em nome da Terra! Para vocês o Olímpio não é um deus?
SÓCRATES Que Zeus? Não diga tolices! Nem sequer existe um Zeus!” (Aristófanes, 1987 Pg202)

            A peça mostra um Sócrates que manipula e orienta os jovens a discursar o que quiserem, fazer da sua vontade a própria verdade. Tamanha capacidade de ensino da sua escola, que Fidípides aprende a dar justificação até para bater no próprio pai. O ultimato da peça sobre Sócrates para aquele que foi “enganado” por ele:

“ESTREPSÍADES - Ai, que falta de juízo ! Como estava louco quando quis jogar fora os deuses por causa de Sócrates! (...) Mas, meu caro Hermes, não fique com raiva de mim, não acabe comigo, tenha compaixão, porque enlouqueci com fanfarronices! (...)(Finge ouvir o que diz a estátua.) Dá-me um bom conselho, não me deixando remendar processos mas dizendo-me a que ponha fogo na casa dos fanfarrões, o mais depressa possível!”  (Aristófanes, 1987 Pg241)

Conclusão

            Observados todos esses contextos, pode-se confundir a personalidade de Sócrates. Realmente não existem certezas para quem seria realmente o homem Sócrates. Também foi visto que a confusão pode ter acontecido por levá-lo em conta antes e depois de sua “tal conversão”.
            Porém, pode-se afirmar um caráter heroico nesse homem, justificando tais perseguições contra seu caráter. Levando em consideração esses pontos:
Se a peça de Aristófanes tocasse verdadeiramente algum aspecto da pessoa de Sócrates, teria ele aceitado pagar uma multa, rememorando assim sua época juvenil perturbada. Porém, sabe-se que ele tinha a verdade ao próprio lado e, graças a ela, não voltou atrás.
 Não poderia alguém com tamanha loucura traçada na peça As nuvens adquirir a fama que parece ter Sócrates, mesmo quando jovem. Também não valeria a pena escrever uma peça para um personagem tão ridículo historicamente. Está a graça da peça, em ridicularizar tudo o que ninguém compreendia. Se acaso fosse Sócrates da forma que mostra o Teatro, onde estariam as surpresas e os fatos cómicos. Todas as críticas parecem sair da ignorância dos ouvintes de Sócrates que não eram capazes de compreender tais ideias. O Primeiro deles o próprio Aristófanes.
Não seria possível existir tal homem da defesa e da apologia, se esse não reconhecesse seu período perturbado de vida. Caso Sócrates tivesse passado por tal condição, de enganador e “canalha”, ele mesmo teria pedido uma punição para si. Pois não suportaria ter que viver com tal fardo.
Ainda considerando esse Sócrates, que tem seu orgulho em sua humildade, também dificilmente falaria que Atenas é quem perderia mais com sua morte, pois não encontrariam outro igual. Como também: “o verdadeiro sábio é aquele que como Sócrates compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente desprovida do mínimo valor.” (Platão, 1987 pg 39) essas duas frases que aparentam vir de Platão, não se encaixam nesse perfil. Sócrates não citaria o próprio nome na frase.
Percebe-se então que os textos de Platão e de Xenofontes possuem mais valor. Um homem que não muda seu discurso perante a morte, em favor da própria vida por convicções, possui grande caráter. E é histórico que morreu. Ninguém morre por uma mentira, e se fosse, Sócrates saberia que mentia, aceitando assim uma punição que lhe caberia.
Sócrates deixou um grande ensinamento. Talvez seja fácil escapar da morte (aqui, a injustiça), difícil é lutar contra a maldade: “(...) ela corre mais ligeira que a morte” (Platão, 1987 pg 56). Para isso, é preciso ir além dos limites, se necessário, dar a própria vida em favor da verdade e do bem.

BIOGRAFIA

(BORGES, 2017) Donaldo de Assis Borges. Advogado e Professor Universitário em Franca/SP. UMA ABORDAGEM TEÓRICA: “APOLOGIA DE SÓCRATES” DE PLATÃO. http://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/filosofia/uma-abordagem-teorica-apologia-socrates-platao.htm

(SANTIAGO, 2017) Emerson Santiago Apologia de Sócrates  

http://www.infoescola.com/filosofia/apologia-de-socrates) Acesso 04/04/2017 10h36


(Pessanha, 1987). (Platão, 1987) (Xenofontes, 1987) (Aristófanes, 1987) Platão 428 ou 7-348 ou 7 A.C.  Defesa de Sócrates / Platão. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates ; Apologia de Sócrates / Xenofonte. As nuvens / Aristófanes ; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha ; traduções de Jaime Bruna, Libero Rangel de Andrade, Gilda Maria Reale Strazynski. — 4. ed. — São Paulo : Nova Cultural, 1987.

O HOMEM E A MORAL ALÉM DA RAZÃO NA OBRA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES DE KANT


O HOMEM E A MORAL ALÉM DA RAZÃO
NA OBRA
FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES DE KANT

                                                                                           Victor Bruno de Souza Sermarini[1]

RESUMO

Este artigo busca a compreensão de como Kant consegue tocar a dignidade se esforçando em tentar utilizar apenas a razão como fundamento único para a moralidade. Também analisar se essa atitude pode ser negativa em certos âmbitos na existência humana, já que parece querer desconsiderar outros aspectos da vida como: a fé, desejos, inclinações ou sonhos. Para isso, analisou-se os pensamentos do filósofo na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, também o estudo de mestres em filosofia, Lazzari e Mello, por fim, as cartas encíclicas Fides et Ratio de São João Paulo II e Laudato Si de Francisco.

Palavras-chave: Immanuel Kant. Dignidade. Moral. Sentidos.

INTRODUÇÃO
Parece ser comum para muitas pessoas pensar na dignidade humana a partir de perspectivas religiosas, sentimentais, biológicas ou culturais. Daí vem o lugar-comum agregado no exemplo das máximas populares como a que diz que “todos são filhos de Deus”; “ninguém merece sofrer”; “ele também tem coração”; ou “todos são brasileiros”.
No campo da Filosofia, Immanuel Kant, em sua obra a Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), consegue abordar o tema da dignidade e da moral, considerando apenas a razão como único fundamento necessário para o entendimento destas. Sabendo que todo conhecimento passa pelos sentidos, o filósofo utiliza de seu conceito de razão pura, a priori, para trazer os motivos que dão base para a dignidade.
Por saber da premissa kantiana da razão, considera-se essencial compreender o conceito de moral, passando, necessariamente, pelas ideias de boa vontade, razão pura, moral a priori e atos morais.
Uma vez realizada uma breve compreensão do pensamento do filósofo, levantou-se questionamentos sobre a conclusão do autor, que aponta para a importância de se esforçar em excluir as experiências empíricas como base da moralidade, de maneira a propor possíveis argumentos que visem se entrecruzar com as proposições relacionadas à moral e consequentemente à dignidade humana.
Para o desenvolvimento deste estudo, realizou-se a leitura da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Immanuel Kant. Dessa obra, para se compreender a moralidade kantiana, fez-se um recorte dos conceitos de:  boa vontade; razão pura, moral a priori; atos morais. Para maior aprofundamento, recorreu-se à pesquisa de Lazzari, Mello e Moreira sobre o assunto.
Depois de compreendidos os aspectos relevantes da moral kantiana para esse trabalho, esclarece-se como o filósofo estrutura a dignidade humana apenas no ato do pensar, ou seja, em ser um fim em si mesmo. A partir dessas perspectivas levantadas, analisou-se as cartas encíclicas Fides et Ratio, de São João Paulo II, e Laudato Si, de Francisco, afim de se verificar outras formas de garantir a moralidade do homem, como também afirmar sua dignidade além dessa apresentada por Kant.    
             
1      A moral kantiana

Como dito inicialmente, é fundamental para este trabalho compreender a moral kantiana. Para isso, dividiu-se as ideias que vão moldar o conceito do autor explicando cada uma delas, a saber: a boa vontade; razão pura, moral a priori; atos morais.

1.1  A boa vontade

O filósofo inicia a primeira seção da obra explicando a importância da boa vontade dentro dos atos humanos, ele diz que “neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” (KANT, 2007, p. 21).
Kant afirma que os talentos do espírito, como a capacidade de julgar, também as qualidades do temperamento, como a coragem ou a decisão, são sim, coisas boas e muito desejáveis, mas que dependendo da vontade, podem se tornar más. O filósofo considera que a fortuna, saúde ou alegria, também podem ser desviadas pela soberba para o mal.  (KANT, 2007).
Essa boa vontade, que corrige a influência sobre a alma, não é a cultura local nem os conceitos religiosos, mas sim algo puro que não sofre influências do empírico. Como bem explica Kant:

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações. (KANT, 2007, p. 23)

Com a ideia da boa vontade, livre de aspectos empíricos e das inclinações do homem, chega-se a um impasse: “A moral não deve ser empírica, ou seja, não deve ser baseada na experiência humana, não deve ter como fundamento a necessidade social ou individual. Assim, esta pura filosofia moral só poderia ser a priori” (LAZZARI, 2012, p.113).
De fato, não são necessárias muitas explicações, pois, se nenhum aspecto empírico, de experiência, cultural ou religiosa pode influenciar a razão, a única maneira dela levar à alguma lógica será com algo a priori.

1.2  Razão pura. Moral a priori

O filósofo reforça a ideia de que a razão será verdadeiramente razão se for pura, se não sofrer nenhuma influência, sem ser movida por qualquer tipo de inclinação, vontade, desejos ou sonhos. Caso contrário, seria uma moral criada e construída de acordo com os interesses momentâneos, locais e aos caprichos humanos. Kant faz esse esforço para forjar uma lei universal, que vale para todos os indivíduos (LAZZARI, 2012).
O filósofo acredita que a razão pura pode oferecer leis a priori, sendo essas, universais para todos os homens:

As leis morais com seus princípios, em todo conhecimento prático, distinguem-se, portanto, de tudo o mais em que exista qualquer coisa de empírico, e não só se distinguem essencialmente, como também toda a Filosofia moral assenta inteiramente na sua parte pura, e, aplicada ao homem, não recebe um mínimo que seja do conhecimento do homem (Antropologia), mas fornece-lhe como ser racional leis a priori. (KANT, 2007, p. 16)
                       
            As leis a priori, que são tangíveis à razão pura, estão diretamente ligadas às ações do homem, esse por sua vez, através de suas experiências e sentidos, irá gradativamente progredindo em “purificar” as ações até chegar em um ato pelo dever. Compreendida acima a boa vontade e a pureza da razão, é necessário pensar em como o homem deve agir perante tais questões.
1.3  Os atos morais

Neste ponto, está a centralidade do artigo, pois é aqui que se deixa bem explícita as ideias do autor sobre as ações do homem. Kant desconsidera as atitudes que são direcionadas por qualquer coisa que não seja o dever, que por sua vez, vem das leis a priori que são compreendidas pela razão pura. Ou seja, caso alguém promova a paz a fim de libertar a própria família, ou, construa diversos hospitais para promover-se nas eleições, não serão atos morais.
O filósofo promove o raciocínio moral categórico que se preocupa com a qualidade intrínseca do ato em si independentemente das suas consequências (MELLO, MOREIRA, 2013).
O homem deve agir, então, por dever. Por simplesmente compreender a lei universal, que é a priori, e assim fazer ou não algo. A ação deve ser um fim em si mesma, deve ser executada sem interesses, somente porque deve ser feita. Neste sentido, Lazzari afirma:

Um elemento importante da moral de Kant é aquele que afirma que o ser racional é um fim em si mesmo. Este indubitavelmente é um dos pilares de sua ética. Portanto, o homem, para agir, deve em primeiro lugar saber que sua ação não deve se basear na experiência, mas na razão. Em segundo lugar, deve desejar que sua ação se torne uma lei universal. Depois, deve agir por dever, por respeito à lei, mesmo sem qualquer inclinação ou vontade. E, tendo claro estes três elementos, deve saber que o fim de uma ação é o ser racional, o homem, não esperando daí nada que não seja agir racionalmente, independente das consequências. (LAZZARI, 2012, p. 125)
           
O ideal da moral kantiana seria uma perfeita autonomia do indivíduo em tocar as leis universais apenas com o intelecto e a partir disso estabelecer suas decisões.
            É pertinente mencionar, nesse ponto, que o filósofo acredita que todos os conhecimentos passam pelos sentidos. E não há como atingir a moralidade pura sem a experiência, o que leva o homem a adquirir um conhecimento gradativo até tocar o a priori. Em outras palavras, é importante para o homem conhecer sua vontade autônoma e agir somente por ela, mas como ele é membro do mundo sensível, suas ações serão sempre limitadas nessa autonomia empírica. Dessas ações, Kant acredita ser possível encontrar aquelas que são a priori, daí, conclui o filósofo, que essas preposições serão sintéticas (que passam pela percepção) a priori, como se segue:
 
[...] assim são possíveis os imperativos categóricos, porque a ideia da liberdade faz de mim um membro do mundo inteligível; pelo que, se eu fosse só isto, todas as minhas acções seriam sempre conformes à autonomia da vontade; mas como ao mesmo tempo me vejo como membro do mundo sensível, essas minhas acções devem ser conformes a essa autonomia. E esse dever categórico representa uma proposição sintética a priori, porque acima da minha vontade afectada por apetites sensíveis sobrevêm ainda a ideia dessa mesma vontade, mas como pertencente ao mundo inteligível, pura, prática por si mesma, que // contém a condição suprema da primeira, segundo a razão; mais ou menos como às intuições do mundo sensível se juntam conceitos do entendimento, os quais por si mesmos nada mais significam senão a forma de lei em geral, e assim tornam possíveis proposições sintéticas a priori sobre as quais repousa todo o conhecimento de uma natureza. (KANT, 2007, p. 104)

Uma indagação que se levantou durante os estudos sobre a moral de Kant foi de como ele, excluindo elementos capazes de delimitar o bom e o ruim sobre as ações humanas, como por exemplo, a tradição religiosa ou as leis definidas pelo estado (as não universais), consegue supor que o homem é capaz de identificar sua ação entre boa ou má. Também como dar certo valor à vida sem nenhuma premissa sentimental, cultural ou afetiva. Para isso, pesquisou-se sobre a dignidade humana segundo a perspectiva do filósofo.




2 Dignidade humana

Kant mostra que é possível desenvolver a ideia de dignidade no homem, também de igualdade e responsabilidade através de sua moral racional.          
Para definir o homem digno, Kant utiliza de modo genial seu conceito de moral e mostra que somente aquilo que tem um fim em si mesmo pode ser senhor do reino dos fins. Aqui, o filósofo mostra que o homem é maior que as coisas não racionais, e não pode ser tratado como objeto, porque:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. (KANT, 2007, p. 77)

            O filósofo lança bases para o conceito de dignidade humana, talvez aqui inédita, pois realmente não considera religiões nem outros fatores, mas apenas a lógica racional. De maneira mais esclarecedora, Kant postula:

A natureza racional existe como fim em si. É assim que o homem se representa necessariamente a sua própria existência; e, neste sentido, este princípio é um princípio subjectivo das acções humanas. Mas é também assim que qualquer outro ser racional se representa a sua existência, em virtude exactamente do mesmo princípio racional que é válido também para mim; é portanto simultaneamente um princípio objectivo, do qual como princípio prático supremo se têm de poder derivar todas as leis da vontade. O imperativo prático será pois o seguinte: Age ‘de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca // simplesmente como meio.  (KANT, 2007, p. 70)

Finalmente, compreende-se como o autor deixa sua filosofia estruturada para a dignidade.  A filosofia de Kant protege cada ser humano e também cria um senso de comunidade racional pautada por direitos e deveres universais.
Apesar da genialidade do filósofo em conceber a moral somente da razão, parece que ainda é deficiente se se observar todos os âmbitos da vida humana, que indicam não se estabelecerem somente no intelecto. Talvez existam outros fins em si mesmos em que o homem possa se apoiar para encontrar um sentido para vida além do dever pelo dever.
3 A plenitude do homem

            A questão fundamental levantada não é, de maneira alguma, uma tentativa de dizer que Kant fracassou em sua obra, mas de trazer uma percepção de que existem outros caminhos, e que estes também podem ser moralmente corretos. Sua ideia corresponde a um clamor de sua época, mas não é a única maneira de encontrar a verdade. Como se pode compreender na carta Fides et Ratio:

A capacidade reflexiva própria do intelecto humano permite elaborar, através da actividade filosófica, uma forma de pensamento rigoroso, e assim construir, com coerência lógica entre as afirmações e coesão orgânica dos conteúdos, um conhecimento sistemático. Graças a tal processo, alcançaram-se, em contextos culturais diversos e em diferentes épocas históricas, resultados que levaram à elaboração de verdadeiros sistemas de pensamento. Historicamente isto gerou muitas vezes a tentação de identificar uma única corrente com o pensamento filosófico inteiro. Mas, nestes casos, é claro que entra em jogo uma certa «soberba filosófica », que pretende arvorar em leitura universal a própria perspectiva e visão imperfeita. Na realidade, cada sistema filosófico, sempre no respeito da sua integridade e livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a prioridade do pensar filosófico de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir. (PAULO II, 1998, §4)


            Essa afirmação não diminui a filosofia de Kant, apenas a encaixa no grande complexo de ideias que é o ser humano. De fato, o autor consegue adentrar em um campo seguro lógico e argumentativo. Tanto que na mesma carta se diz “Quando a razão consegue intuir e formular os princípios primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentemente conclusões de ordem lógica e deontológica, então pode-se considerar uma razão recta” (Paulo II, 1998 §4).
            Entretanto, o caminho é seguro apenas para razão, sendo o homem não somente feito de boa vontade. Já na Antiguidade, Aristóteles dizia que “o homem é um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade [...] o homem feliz necessita de amigos” (ARISTÓTELES, 1991, p.212). Compreende-se, aqui, que o homem necessita para sua existência de coisas além da própria razão.
            A vivência em sociedade, e com ela, todas as coisas apreendidas sobre o bem e o mal são importantes para a existência humana. Uma vez que Kant diz que o homem deve ser autônomo em sua própria razão para tomar suas decisões, exclui um patrimônio histórico e cultural da sociedade. Sobre isso, São João Paulo II dirá:
O homem não foi criado para viver sozinho. Nasce e cresce numa família, para depois se inserir, pelo seu trabalho, na sociedade. Assim a pessoa aparece integrada, desde o seu nascimento, em várias tradições; delas recebe não apenas a linguagem e a formação cultural, mas também muitas verdades nas quais acredita quase instintivamente. Entretanto, o crescimento e a maturação pessoal implicam que tais verdades possam ser postas em dúvida e avaliadas através da actividade crítica própria do pensamento. Isto não impede que, uma vez passada esta fase, aquelas mesmas verdades sejam « recuperadas » com base na experiência feita ou em virtude de sucessiva ponderação. Apesar disso, na vida duma pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal. Na realidade, quem seria capaz de avaliar criticamente os inumeráveis resultados das ciências, sobre os quais se fundamenta a vida moderna? Quem poderia, por conta própria, controlar o fluxo de informações, recebidas diariamente de todas as partes do mundo e que, por princípio, são aceites como verdadeiras? Enfim, quem poderia percorrer novamente todos os caminhos de experiência e pensamento, pelos quais se foram acumulando os tesouros de sabedoria e religiosidade da humanidade? Portanto, o homem, ser que busca a verdade, é também aquele que vive de crenças. (1998, §31)

            Com isso, é de suma importância que se considere também a experiência, a cultura e as inclinações para os atos morais a fim de diminuírem os erros na história da humanidade.
            O Papa Francisco também dirá que se existe hoje um problema ecológico, ele não aconteceu somente por desvios da razão deturbada ou inclinada, mas sim pela crise ética, cultural e espiritual da modernidade. (2015, §119)
            O caminho percorrido até aqui mostra que para o homem, talvez mais do que uma justificativa lógica em suas ações, seja necessária uma motivação emocional ou cultural, que de certa forma também vai corrigir a vontade do espírito. Os homens são diversos no mundo, e diversas são suas capacidades e oportunidades. Nem todos podem ser filósofos, mas todos possuem seu próprio caminho, como se pode compreender:
Os filósofos procuraram, ao longo dos séculos, descobrir e exprimir tal verdade, criando um sistema ou uma escola de pensamento. Mas, para além dos sistemas filosóficos, existem outras expressões nas quais o homem procura formular a sua « filosofia »: trata-se de convicções ou experiências pessoais, tradições familiares e culturais, ou itinerários existenciais vividos sob a autoridade de um mestre. A cada uma destas manifestações, subjaz sempre vivo o desejo de alcançar a certeza da verdade e do seu valor absoluto. (Paulo II, p1998, §27)
            Kant deu uma resposta para seu tempo desenvolvendo um meio termo para o empirismo e o racionalismo. Mesmo assim, quando se trata de moralidade e dignidade, parece ainda favorecer a razão. Pois é fato que um homem pode até conseguir ou tentar fazer todas as coisas pelo dever, mas deixa a dúvida se irá encontrar sentido em seus atos como promete o filósofo. Como por exemplo, alguém que deseja morrer, ter somente a questão de que é um fim em si mesmo como estrutura, talvez não seja suficiente como quando se olha para o próprio filho, amigo ou esposo e vê nele uma razão para viver. Também quando se é médico somente pelo dever, contra alguém que o faz por inclinação familiar e religiosa, pois viu alguém sofrer e deseja fazer o bem aos outros. Nesse caso, como seria a reação de um médico que salva por dever e outro por paixão ao perder um paciente? Qual dos dois seria mais humano para com a dor? O que não aceita fatores empíricos ou o que sofre com quem sofre? Kant parece tirar parte do sentido da vida, os sentimentos, porque elimina os prazeres temporais e as causas temporais.
Também é muito interessante perceber que para um homem que tanto valorizou a razão, e chegou a dizer que a dignidade está na capacidade de pensar, segundo Reale, nos últimos anos de sua vida: “Tornou-se quase cego, perdeu a memória e a lucidez. ” (REALE, 2005, p. 348). Então, talvez seja justo concluir que dentro de sua própria filosofia, Kant morreu sem dignidade.
Como foi dito, o indivíduo é muito mais complexo que sua própria razão. E esta sofre constante influência do empírico, o que, talvez, não seja tão problemático quanto imagina o filósofo. É justamente boa parte dessas influências que acabam educando o homem a ser moralmente correto.
                       
CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Levando em consideração as ideias discutidas, percebeu-se que se houve um exagero por parte do autor, foi em não considerar um caminho para a verdade fora de si mesmo, ou seja, fora das próprias conclusões mesmo que sejam universais. Visto que, de fato, não há problemas em se retirar moralidades e dignidade de outros aspectos fora da razão pura, como na religião ou cultura, já que estas trazem consigo um caminho de acúmulo de experiência que a humanidade adquiriu ao longo da história. Entretanto, também foi compreendido que todas as filosofias respondem à sua época e quando desenvolvida em direção da verdade, contribui para a sociedade de alguma forma.  Por isso, Kant foi feliz em desenvolver uma dignidade e moralidade na razão pura e pelo dever. Hoje, em uma sociedade plural, diversas pessoas podem encontrar respostas no caminho trilhado pelo filósofo.
            Por certo, pode-se dizer que é necessário ao homem considerar todos os aspectos que o circundam, seja a razão, os sentimentos, a cultura, a religião ou a experiência transmitida e vivida. A vida de cada indivíduo é única e não se tem tantas chances para os erros. Isso faz com que seja necessário utilizar de todos os meios, desde que esses busquem a verdade, a fim de realizar-se em comunidade, e pessoalmente, não somente o dever, como também os próprios sonhos e vontades.
            Ao concluir esse trabalho, fica a curiosidade de, no futuro, pesquisar respostas dentro da própria filosofia do autor, já que se tem conhecimento da importância de seu trabalho e do tempo que dedicou em realizá-lo. Kant, provavelmente, tenha opiniões e discursos em defesa dos argumentos apresentados.

             
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS     

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco; Metafísica; Poética. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornhein. Coleção Os Pensadores v. 2 4º edição, editora Nova Cultural, São Paulo, 1991 

FRANCISCO, Carta encíclica Laudato Si sobre o cuidado da casa comum. 2015. Disponível em: http://w2.vatican.va/ content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.pdf – Acesso em: 20 mar 2018

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes, Tradução Paulo Quintela. Edições 70. 1º edição Lisboa/Portugal, 2007

LAZZARI, Julio Cezar Junior. Alguns Aspectos da moral de Kant na obra Fundamentação da metafísica dos costumes, mestrando em Filosofia pela USJT, Prometeus, Filosofia em Revista. Ano 5, nº 9, janeiro-junho de 2012

MELLO, Cleyson de Moraes; MOREIRA, Thiago. A fundamentação da metafísica dos costumes em Immanuel Kant e a promoção da dignidade da pessoa humana. Disponível em: http://www.faa.edu.br/ revistas/docs/RID/2013/RID_2013_1
0. pdf – Acesso em: 18 mar 2018

PAULO II, JOÃO, Carta encíclica Fides et Ratio, aos bispos da igreja católica sobre as relações entre fé e razão. 1998. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091998_fides-et-ratio.html - Acesso em: 20 mar 2018

REALE, Giovanni; ANTESERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e idade média/; Trad. Ivo Storniolo São Paulo: Paulus, 2005. (Coleção Filosofia).



[1] Aluno do segundo ano de bacharelado em filosofia do Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL

O CONCEITO DE JUSTIÇA NA SUMA TEOLÓGICA DE TOMÁS DE AQUINO


O CONCEITO DE JUSTIÇA NA SUMA TEOLÓGICA
 DE TOMÁS DE AQUINO

Victor Bruno de Souza Sermarini[1]

RESUMO

Este artigo tem como objetivo realizar um breve aprofundamento sobre o tema da justiça dentro da visão de Tomás de Aquino em sua obra a Suma Teológica, observando em especial os artigos 1, 5 e 7 da questão 58 e os artigos 1 e 2 da questão 61, sendo ambas questões da segunda seção da segunda parte da obra, considerando as classificações e explicações do autor juntamente com a análise de especialistas, chegando assim em um resumo da parte mais estrutural do tema.

Palavras-chave: Tomás de Aquino. Justiça Comutativa. Justiça Distributiva. Justiça Geral ou Legal

INTRODUÇÃO

             A justiça é essencial na vida comunitária do homem, seja ela em grandes cidades, em vilas ou aldeias. Por esse motivo, ela foi muito trabalhada por diversos autores ao longo dos anos. Um deles inspirado em textos de Aristóteles e iluminado pela luz da religião cristã, conseguiu desenvolver o tema de forma diferente e completa. É considerado o representante máximo da escolástica, também um doutor da igreja católica, Tomás de Aquino. O santo trabalha o tema a partir da questão 57 na segunda seção da segunda parte em sua obra a Suma Teológica.
            Esse artigo apresenta alguns pontos estruturais do conceito de justiça na obra de Tomás, isso porque não seria possível abranger todo o conteúdo em um trabalho como esse apresentado aqui. Sendo assim, apresenta-se um breve resumo de sua vida e obra, e também explica seus pensamentos com auxílio de estudiosos da área, levantando os seguintes temas sobre a justiça: O que é, ou seja, a definição em si de Tomás; se ela é uma virtude geral, levantando a questão se a virtude e a justiça se confundem; se além da justiça geral, há uma particularidade na mesma, demonstrando o início da divisão do objeto estudado; se da justiça particular existe a separação entre distributiva e comutativa, especificando ainda mais suas características; por fim, se o meio termo é igual para as todas as divisões de justiça, o que talvez seja o ponto mais importante no tempo atual, principalmente por envolver a questão de dignidade humana no âmbito do quê e quanto cada um merece receber.
                                                 
1 Tomás de Aquino

1.1 Vida e obra

            São Tomás nasceu em Roccasecca no sul do Lácio na Itália em 1221. Landolfo seu pai, italiano, era o conde de Aquino. Já sua mãe era normanda e se chamava Teodora.
Teve sua educação primária na abadia de Montecassino, onde ficou até a mesma entrar em decadência devido às contínuas guerras entre papa e imperador. Posteriormente vai estudar em Nápoles.
            Nesta época conhece a ordem dos dominicanos, que oferecia uma nova forma de vida religiosa, abertas aos mais pobres e envolvida no cotidiano do povo. O santo toma então a firme decisão de fazer parte da ordem, passando por cima até da contrariedade da família.
            Tomás tinha um comportamento reservado e silencioso o que fez com que ele recebesse o apelido de “Boi mudo”. Porém logo foi reconhecido por seus superiores e foi convidado a lecionar. Ensinou em Paris de 1252 a 1259. Depois saiu da França e passou pelas maiores universidades da Europa.
            Foi chamado novamente a Paris para combater os antiaristotélicos e os averroístas. Nesse período escreve o De aeternitate mundi e o De unitate intelectos contra averroistas. Mais tarde, quando estava na Itália, começou a escrever a sua maior obra a Summa theologiae (Suma teológica).
            Tomás morre cedo (não para sua época), aos 53 anos, em 7 de março de 1274, em um mosteiro cisterciense de Fossanova, quando estava a caminho de um concílio em Lião. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 211).
            Sua vida consagrada aos estudos e ao ensino fez com que ele escrevesse diversas obras. Muitos desses textos são comentários sobre a Bíblia, sobre os santos padres, Aristóteles e outros. Talvez as obras mais significativas tenham sido O Ente e a Essência (1254-1256), as Questões Discutidas sobre a verdade, e as duas Sumas, a contra os gentios, destinada a converter os muçulmanos, e a Teológica, que se tratará em especial a seguir. (PENSADORES, 1988, p. 117).


1.2 A Suma Teológica

            A Suma foi escrita por Tomás em três etapas, de forma organizada e com ricas abordagens, basicamente em um sistema de perguntas e respostas, citando vários autores, particularmente Aristóteles e santo Agostinho, sempre num diálogo crítico. O doutor faz da filosofia uma serva da teologia, quer mostrar que essa última é uma ciência autônoma, mesmo que seja fundamentada em verdades que só se tornam conhecidas pela luz transcendente.
            Na primeira parte, o autor estuda a essência divina: A natureza de Deus, o que Ele é, como é e de que modo o homem pode conhecê-lo e falar dele; posteriormente levanta a questão sobre a obra de Deus. Foi escrita em Viterbo no ano de 1266.
            A segunda parte foi escrita em Paris em 1272, o autor trata do movimento das criaturas em direção a Deus e do problema da ética, que envolve razão e o livre arbítrio entre o bem e o mal (HUISMAN, 2000, p. 515). Quanto à temática específica da justiça, Claudio Pedrosa Nunes escreve:

Todo o estudo da virtude da Justiça é tratado por Santo Tomás específica e profundamente na Suma Teológica, a partir da Questão 57 da Secunda Secundae. É no capítulo das virtudes especiais que o Santo Doutor dilucida todo o seu entendimento a respeito da Justiça, dissecando-a em um verdadeiro tratado. É na Suma Teológica que o aquinatense se debruça de forma sistemática sobre a problemática da Justiça, integrando as lacunas dessa virtude especial contida na Ética de Aristóteles e aperfeiçoando-a para torná-la instrumento norteador das relações jurídicas e sociais entre os homens. (2011, p. 351).


            Em Nápoles, em 1272, Tomás deu início à terceira parte da obra, porém não a concluiu. A última parte é dedicada a Cristo, Deus feito homem, salvação por Jesus, e especialmente o pecado original tendo nos seus últimos escritos sobre alguns dos sacramentos. (HUISMAN, 2000, p. 515).
            Uma vez passado brevemente o contexto de vida do autor e como se compõe sua obra principal, é mais compreensível tratar do tema específico do artigo, a justiça. Essa na Suma teológica é muito bem dividida e explicada minuciosamente, o que não permite nesse breve artigo abordá-la da maneira mais profunda. Porém é possível tratar de certas questões para esclarecer de maneira plausível o fundamental da ideia de Tomás sobre o assunto. Para isso, coloca-se a questão 58, artigo 1, 5, 7, e a questão 61, artigos, 1 e 2.

2 A JUSTIÇA EM TOMÁS DE AQUINO

2.1 QUESTÃO 58, ARTIGO 1: O QUE É A JUSTIÇA?

            O primeiro artigo da questão 58, traz a seguinte definição sobre a justiça "A justiça é o hábitus, pelo qual, com vontade constante e perpétua, se dá a cada um o seu direito"(AQUINO, 2012, p. 55). Aqui, há vários termos que tornam complexa a resposta, como Hábitus. Para Tomás, toda virtude é um hábito, do qual provêm os atos bons. Não pode, pois, ser considerada apenas um ato bom isolado. Então qual é o específico da virtude da Justiça? Consiste na relação de cada pessoa com outras pessoas. Neste sentido, Rampazzo escreve, indicando também outras características da justiça:  

Toda virtude é um hábito, do qual provêm os atos bons. Por isso a virtude vai ser definida por um ato bom, conforme o específico de cada virtude. Mas o específico da justiça diz respeito aos atos relativos a outrem. Neste sentido diz-se corretamente que a justiça consiste em dar a cada um o que lhe pertence. Mas, para que o ato seja virtuoso, é necessário que seja voluntário, estável e firme. A esse respeito, ele cita Aristóteles, para quem o ato de virtude exige três condições: que o sujeito o pratique da maneira consciente, com livre escolha para um fim devido; e de maneira constante. Mas a primeira destas condições está incluída na segunda, pois, sempre segundo Aristóteles, o que fazemos por ignorância é involuntário. Por isso, para definir a justiça, primeiro enuncia-se a vontade. Em seguida, a constância e a perpetuidade designam a estabilidade de tal ato. Conclui aceitando esta definição de justiça no sentido que o hábito é especificado pelo ato[...]. (2017, p. 13).

            A justiça, então, é considerada um hábito por estar ligada na vontade do homem, que além de praticar apenas alguns atos justos, deve fazê-lo de maneira constante, ou seja, um ato isolado de justiça não faz com que alguém seja considerado justo, é preciso que o indivíduo sempre direcione sua vontade para este bom hábito. Sempre que o homem se decidir por um ato virtuoso perante a comunidade, será justo. Porém, uma vez compreendendo a justiça dessa forma, ela se confunde com a própria virtude, tema que Tomás aborda no artigo 5 da questão 58.


2.2 QUESTÃO 58, ARTIGO 5: A JUSTIÇA É UMA VIRTUDE GERAL?

            Para Tomás, a justiça só existe em relação com outrem, e uma vez praticando um ato justo para com a sociedade ou comunidade direcionado ao bem comum. Mas, num certo sentido, a justiça é expressa através de todas as outras virtudes, como ele mesmo explica:

É manifesto, com efeito, que todos os que pertencem a uma comunidade têm com ela a mesma relação das partes para com o todo. Ora, a parte, por tudo o que ela é, pertence ao todo e qualquer bem da parte deve se ordenar ao bem do todo. Assim o bem de cada virtude, quer ordene o homem para consigo mesmo, quer o ordene a outras pessoas, comporta uma referência ao bem comum, ao qual orienta a justiça. Dessa maneira, os atos de todas as virtudes podem pertencer à justiça, enquanto esta orienta o homem ao bem comum (AQUINO, 2012, p.  63).


            Nunes compreende que a justiça de Tomás está em um quadro entre as quatro virtudes cardeais sendo ela a maior de todas, e explica:

A virtude da Justiça é geral porque toca direta ou indiretamente a todas as outras virtudes cardeais, abrangendo-as sob um vínculo de coordenação. Por isso, entendemos que a Justiça é a mais importante das virtudes cardeais. É legal a Justiça porque também objetiva promover o bem comum. A Justiça legal ou geral encerra uma relação do governante para o governado, isto é, do “príncipe” para os “súditos” ou do maior para o menor. É a Justiça pautada na proporcionalidade das relações entre os homens e o governo, atribuindo-lhes bens segundo seus méritos ou deméritos. (2011, p. 396).

            Uma vez esclarecida a justiça geral, que está na relação do indivíduo para o todo, quando se trata de atitudes e hábitos, é preciso trabalhar a questão de indivíduo para indivíduo.


2.3 QUESTÃO 58, ARTIGO 7: ALÉM DA JUSTIÇA GERAL, HÁ UMA JUSTIÇA PARTICULAR?

            Para Tomás essa questão é clara, além da justiça legal, que direciona o homem ao bem comum, é preciso existir outra classificação que possa tocar as coisas particulares de uma pessoa a outra. Para melhor compreensão, trata-se agora da justiça particular e não geral, onde ela, juntamente com outras virtudes, direciona o homem em suas relações com os outros e consigo mesmo (apesar de ainda continuar a maior das virtudes). É possível agora, elencar outros hábitos que guiam o homem em relação a si mesmo e não apenas ao bem comum, como a temperança, a fortaleza e a prudência. Como se vê a seguir:

A prudência se dirige a obrar e julgar retamente com as circunstâncias e especificidades de cada caso apreciado. A fortaleza é a virtude que nos mantém firmes no comportamento moderado mesmo considerando nossos temores, dúvidas e audácias diante do que se nos ocorre. Trata-se de conduta a ser adotada individualmente por cada pessoa, isto é, com relação aos seus próprios atos. A temperança pressupõe mensuração das paixões, de modo a elevar a razão. (NUNES, 2011, p. 395).

           
            A justiça particular, porém, ainda se dividirá de duas formas, a comutativa e a distributiva, assunto que Tomás trata na questão 61 da Suma Teológica.
                                                    

2.4 QUESTÃO 61, ARTIGO 1: É ADEQUADO AFIRMAR DUAS ESPÉCIES DE JUSTIÇA, A DISTRIBUTIVA E A COMUTATIVA?

            Para não deixar dúvidas sobre a diferença da justiça geral e particular, esclarece-se que: A justiça geral é do indivíduo para com o todo, ou seja, hábitos que todo homem deve possuir para contribuir com a comunidade ou simplesmente cumprir com os deveres direcionados pela Lei; A justiça particular aparece nas relações entre indivíduos, ou seja, contratos, atos jurídicos, compras e vendas.
            Ainda se tratando de justiça particular, aparecem duas classificações sobre ela:

Uma, de parte a parte, à qual corresponde a relação de uma pessoa privada a outra. Tal relação é dirigida pela justiça comutativa, que visa o intercâmbio mútuo entre duas pessoas. A outra relação é do todo às partes; a ela se assemelha a relação entre o que é comum e cada uma das pessoas. A essa segunda relação se refere a justiça distributiva, que reparte o que é comum de maneira proporcional. Há, portanto, duas espécies de justiça, a comutativa e a distributiva. (AQUINO, 2012, p. 97).
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            É preciso cuidado para que não haja equívoco ao interpretar a justiça geral em relação à justiça distributiva, pois esta é relacionada ao todo para com o indivíduo, já aquela é relacionada ao indivíduo para com o todo.
            A divisão de bens do todo para o indivíduo, nasce na premissa de que os mesmos devem ser distribuídos aos homens segundo a sua participação social (NUNES, 2011, p. 399). Aqui está, talvez, a maior problemática da justiça, pois nela se inserem as questões: quem é cidadão, a dignidade humana; e o como interpretar a participação social, que é diferente para Tomás em relação a Aristóteles, o que se explicará no tópico a seguir, compreendendo o meio termo equitativo.

2.5 QUESTÃO 61, ARTIGO 2: O MEIO TERMO SE CONSIDERA DO MESMO MODO NA JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E NA COMUTATIVA?

            Antes de trabalhar essa questão, é preciso compreender o que é o “meio termo”. Tomás utiliza do conceito de Aristóteles: não somente esse, mas quase toda sua base de justiça. Este afirma que o homem possui impulsos, paixões e sentimentos que tendem à falta ou ao excesso, e com auxílio da razão deve buscar o meio termo, ou seja, nem o excesso, nem a falta (REALE; ANTISERI, 1990, p. 204).
            O meio termo em relação à justiça comutativa é simples, pois parte do princípio aritmético, por exemplo, em uma troca de bens, aquele que dá algo de valor seis, e recebe algo de valor quatro, deve receber outra coisa que lhe restitua o valor de dois, assim ambos ficam com o mesmo valor (AQUINO, 2012, p. 100).
            Já se tratando de justiça distributiva, “o meio-termo não se considera por uma igualdade de coisa a coisa, porém segundo uma proporção das coisas às pessoas; de tal sorte que, se uma pessoa é superior à outra, assim também o que lhe é dado excederá o que é dado à outra”. (AQUINO, 2012, p. 100).
            Tomás seguiu Aristóteles em diversos pontos na questão que aqui foi trabalhada, porém Nunes afirma que Aquino foi superior em certo aspecto:

A Justiça distributiva, assim, teve sua definição oferecida por Aristóteles, no que foi este seguido pelo aquinatense. A Justiça em geral consiste na igualdade. Mas a igualdade não é aplicada ou considerada somente na forma comum, isto é, na entrega de quantidades iguais de bens a cada pessoa. Daí que se idealizou a concepção de Justiça distributiva, que, ao que se percebe da doutrina tomista, é a que melhor expressa a distribuição correta dos bens, direitos e deveres entre os homens, considerando, para isso, uma igualdade geométrica ou arquitetônica pautada na proporcionalidade de entrega dos bens sociais. (2011, p. 399).


            De fato, é possível compreender que Tomás tem uma visão mais humana sobre a justiça distributiva, uma vez que nasce séculos depois de Aristóteles, e aparece dentro de um ambiente religioso cristão, onde todos são filhos de Deus e possuem os mesmos direitos perante o Criador.

CONCLUSÃO

            Trabalhou-se aqui o conceito de justiça para Tomás de Aquino dentro da Suma Teológica, onde o santo deixa para a sociedade um grande trabalho e um difícil, mas belo caminho para o bem-estar de todos.
            Como foi dito, o assunto é extenso, porém a base da justiça tomista foi tratada aqui, o que serve de base para novas pesquisas e futuros projetos, como por exemplo: Um aprofundamento em cada artigo da Suma Teológica que trata o tema da justiça; uma diferenciação mais completa entre Aristóteles e Tomás a respeito do “bem comum”, “o sumo bem”, os direitos de cidadania, e principalmente, a maneira mais justa de distribuir os bens comuns entre os cidadãos sem que haja distinção de pessoas.
De todos os pontos tratados, um chama mais atenção para os dias atuais, que é especificamente a justiça distributiva. De fato, compreende-se que o homem ainda tem muitas dificuldades em manter-se nos aspectos sobre as virtudes, porém, a divisão de bens parece estar mais necessitada de atenção, uma vez que a distribuição não se enquadra apenas em bens materiais, mas também nas oportunidades para o futuro. O “como” realizar essa distribuição, tendo como base a afirmação que cada um deve receber de acordo com sua participação social, juntamente com a ideia cristã de igualdade, é um grande desafio. O tema da justiça deve ser ainda mais trabalhado.  Afinal, se houvesse uma divisão mais justa entre todos, os homens possivelmente ficariam mais disponíveis à prática direcionada ao bem comum (justiça geral), e também seriam menos propícios em tirar vantagens em seus acordos uns com os outros (justiça comutativa).

BIBLIOGRAFIA 

AQUINO, Tomás, Suma Teológica. Justiça-Religião-Virtudes Sociais: II seção da II Parte- questões 57-122. 2. Ed. São Paulo: Loyola, 2012. V.6.
HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas. Tradução Castilho Benedetti. Editora Martins Fontes São Paulo 2000
NUNES, Claudio Pedrosa. Uma reflexão Conceitual-Jurídico-Cristã de Justiça em Tomás de Aquino. Universidade de Coimbra. Faculdade de direito Doutoramento em Direito. Coimbra, abril de 2011.

PENSADORES, Os pensadores. Seleção de textos / Sto. Tomás de Aquino, Dante Alighieri. Tradução Luiz João Baraúna... [et al.] 1988. São Paulo: Nova Cultural Disponível em:
http://www.netmundi.org/home/wp-content/uploads/2017/03/Tomas-de-Aquino-e-Dante-Cole%C3%A7%C3%A3o-Os-Pensadores-1988.pdf – Acesso em: 23 set. 2017
RAMPAZZO, Lino. A visão antropológica em Santo Tomás e o destaque do tema da justiça da Suma Teológica. Lorena: Centro Unisal, 2017. Digitado. 
REALE, Giovanni; ANTESERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e idade média/; Trad. Ivo Storniolo São Paulo: Paulus, 1990. (Coleção Filosofia).

______.  História da filosofia: Patrística e escolástica.  Trad. Ivo Storniolo, São Paulo: Paulus 2003.


[1] Aluno do primeiro ano de bacharelado em filosofia do Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL